Bilhões de dólares estão sendo investidos em tecnologia de ponta, equipes com milhares de neurocientistas, engenheiros e designers obstinados em extrair a mercadoria mais valiosa da atualidade: sua atenção. A extração de foco já tem consequências que afetam nossos cérebros em níveis individuais e globais e ignorar esses fatos pode ter um preço mais alto do que imaginamos.
Enquanto a questão só aumenta, é importante sabermos: há esperança.
“Sinto uma culpa tremenda...Acho que todos sabíamos que algo ruim poderia acontecer”
“Nós criamos ferramentas que estão rompendo o tecido social de como a sociedade funciona...Está corroendo as bases fundamentais de como as pessoas se comportam consigo e entre si"
Chamath Palihapitiya, ex-VP de user growth do Facebook
“Nós limitamos quanta tecnologia nossas crianças usam em casa… Na verdade, não permitimos o uso do iPad em casa. A gente acredita que é muito perigoso para elas de fato”
Steve Jobs, ex-CEO da Apple
“Eu estou convencida de que o demônio habita em nossos celulares e está causando estragos em nossas crianças”
Athena Chavarria, ex-assistente executiva do Facebook
“Em uma escala entre doces e crack, está mais perto de crack”
Chris Anderson sobre telas, ex-editor da revista Wired
“Só Deus sabe o que está fazendo com os cérebros de nossas crianças”
“O processo de desenvolvimento foi resumido em: como podemos consumir o máximo do seu tempo e atenção consciente? Através, por exemplo, de ciclos de feedback de validação social estamos explorando uma vulnerabilidade na psicologia humana… Nós entendíamos isso, conscientemente, e resolvemos fazer mesmo assim”
Sean Parker, ex-Presidente fundador do Facebook
INTRO: JÁ ACONTECEU COM VOCÊ?
Alguma vez você já sentiu seu celular vibrar no bolso por engano?
Você fica preocupado se sai de casa sem o celular?
Por acaso, conferir mensagens, redes sociais e notícias é a última coisa que faz ao dormir e a primeira ao acordar?
Quantas vezes foi olhar uma coisinha rápida no celular, mas se perdeu em outros infinitos interesses, esquecendo o que foi ver em primeiro lugar?
Já teve dificuldades para parar? “Só mais uma partida….só mais um minuto” e pronto...perdeu a noção do tempo?
Alguma vez chegou em casa depois de um dia exaustivo com planos gostosos em mente: cozinhar, tomar um banho relaxante, ver aquele filme que sempre deixa pra depois, mas acabou ficando no celular, deixando tudo de lado?
Você já deve ter falado para si que é apenas uma questão de disciplina e autocontrole, certo?
Fazendo um paralelo, se alguém simplesmente retirar uma máquina de caça-níquel de um jogador compulsivo ele pode apresentar sintomas como insônia, dores de cabeça e barriga, perda de apetite, fraqueza no corpo e palpitações cardíacas. São consequências e reações físicas similares aos sintomas de abstinência de álcool. Ou seja, vício deste mero ”joguinho” pode ser tão real e impactante quanto o vício em substâncias químicas. Não se trata apenas de autocontrole, mas sim de reações fisiológicas no corpo humano.
Pensemos em um dia usual da sua vida...quando você planejou aquela noite tranquila, não era sua escolha cozinhar e assistir um filme? Não era o que VOCÊ queria? O que ocorreu no meio do caminho para que tudo fosse por água abaixo?! Será que foi uma simples distração ou você pensou conscientemente em mudar tudo? Sem falar na ressaca do sentimento de "tempo perdido” que vem a logo a seguir.
Ainda incrementando esse mistério, o que se passa com os CEOs e funcionários do Vale do Silício que restringem e proíbem seus próprios filhos e filhas quanto ao uso de tecnologias? Alguns desses pais e mães até fazem suas babás assinarem contratos proibindo o uso de telas perto de suas crianças. O que está acontecendo?
O "Q" da _UESTÃO
Não podemos negar os benefícios evidentes que a tecnologia moderna trouxe consigo: a comunicação e colaboração mundial, evolução nas indústrias produtivas, descobertas científicas, armazenamento de dados, difusão do conhecimento e outras incontáveis soluções. A tecnologia é, ademais, uma realidade irreversível do mundo atual, ela faz parte do nosso dia a dia social, dos nossos trabalhos, risadas e até educação.
No universo tecnológico, existem múltiplas empresas com uma infinidade de modelos de negócios... Dentre esses modelos, escolhemos dar enfatizar a Propaganda Digital, em inglês Advertising-Supported Revenue (Receita baseada em Propaganda).
Há uma infinidade de exemplos, muitos deles tem mais de uma fonte de receita envolvida (como por exemplo freemium*), mas por via de regra: conteúdo “grátis” .
reddit
facebook
youtube
tinder
instagram
twitter
blogs
tiktok
...
As empresas dessa categoria aumentam seus resultados financeiros conforme você, usuário, consome propagandas e anúncios em suas respectivas plataformas. Essas mesmas plataformas almejam entregar a maior quantidade de anúncios possíveis para audiências segmentadas, gerando maior afinidade para que você converta mais e mais vendas para as marcas anunciantes. Ou seja, essa máquina de precisão só funcionará se tiver a maior quantidade de dados sobre seus usuários, novamente, você. Cada like, clique, vídeo assistido, e-mail enviado, aba aberta e movimento de mouse são rastreados, saiba que 150 likes são suficientes para que o Facebook te conheça melhor que seus próprios pais.
UM EXEMPLO PRÁTICO
Quando você acessa o YouTube querendo aprender a tocar ukulele, a verdadeira intenção do YouTube é que você compartilhe o máximo de informações pessoais: gostos, interesses, desejos...e você vai fazendo isso enquanto digita suas buscas por vídeos, comenta ou dá likes/dislikes nos conteúdos. Assim a plataforma segue te mapeando e mantendo vidrado por meio de recursos bem elaborados, como autoplay de vídeos, scroll infinito, notificações, cores vibrantes, sons de alertas e aquela pequena lista de "recomendamos estes outros 500 vídeos sobre ukulele". Traduzindo o objetivo deles, "fique aqui para sempre e assista o máximo de propagandas que te interessam". Não é à toa que o algoritmo de busca é norteado primordialmente por esta singela métrica de sucesso:
MAXIMIZAR O SEU TEMPO DE TELA.
Repare que não estamos falando de maximizar a satisfação ou refinar as descobertas de conteúdos nobres que tragam conhecimento e valor agregado. A métrica de sucesso para toooooodas essas empresas é simplesmente deixar você imerso. Sinto lhe dizer, mas você não é o cliente, você é o produto.
O nome disso é Extractive Attention Economy, em português Economia de Extrativismo da Atenção. Quando sua atenção se torna uma mercadoria disputada entre diversos players ou, como diz Sandy Parakilas, ex-gerente de operações do Facebook: "o modelo de negócios deles é sugar o máximo do tempo possível de sua vida e vender para anunciantes".
E aí chega o seu tio teimoso e diz:
- Ué, mas qual é problema? Só estão me mostrando anúncios, não me obrigam a comprar nada. Estão me entretendo, estou gostando de passar tempo assim! Acho ótimo que só mostram anúncios e conteúdos que tem a ver comigo. Só recomendações que vou gostar!
De fato, não há nada de errado em duas partes conscientes entrarem em um acordo comercial, afinal esta relação pode ser positiva para ambos os lados. A questão só seria preocupante, caso uma das partes tivesse bilhões de dólares, um poder tecnológico exuberante, estudos científicos e milhares de engenheiros e designers trabalhando incessantemente para inserir gatilhos químicos e viciantes...mas esse não deve ser o caso.
...deve?
“Talvez o fato mais importante sobre o século 21 é que agora somos seres hackeáveis”
- Yuval Noah Harari, historiador, filósofo e futurista
SINTOMAS
"Estamos no maior experimento comportamental que o mundo já viu, você está sendo testado a todos os momentos, coisas como a cor do seu botão de like. Deveria ser esse tom de azul? Talvez um pouco mais vermelho? Testam você em diferentes horários, até escolherem o perfeito formato e perfeita cor que maximizam seu scrolling contínuo", este é Aza Raskin, um dos mais reconhecidos designers do Vale do Silício e criador de alguns elementos que você pode reconhecer, como o scroll infinito.
Aza explica que a invenção do "scroll infinito" foi baseada em um experimento científico: se uma tigela de sopa se auto encher secretamente, pessoas comem mais por não terem a referência visual de que estão terminando. Hoje as plataformas do Facebook, Youtube, Instagram, Reddit, Twitter e incontáveis outros exemplos seguem o mesmo conceito, as páginas nunca acabam e podemos permanecer rolando as notícias, conteúdos e propagandas eternamente. “Percebemos que se não oferecermos tempo para que a sua mente e cérebro alcancem seus impulsos, não haverá estímulo de pausa, então elas continuam lá rolando”, diz o criador do recurso, “É como se estivessem despejando cocaína digital na sua interface”.
E os "frutos" desse sistema transbordam um simples indivíduo, gerando também consequências globais. A soma destes efeitos já é denominada por especialistas como “rebaixamento humano” e o documentário investigará cada um deles:
Manipulação de dopamina: o neurotransmissor responsável pelo nosso sentimento de recompensa e comportamento é um artifício manipulado para nos manter nas telas por meio de curtidas, reações, sorrisos e sentimentos de validação social.
Condicionamento operante: a aleatoriedade de recompensa eleva o comportamento compulsivo, como constatou o psicólogo B.F. Skinner. Da mesma forma, entramos em redes sociais e plataformas de comunicação sem saber o que vamos encontrar: mensagens com oportunidades imperdíveis? Dezenas de likes? Comentários? Ou simplesmente nenhum dos anteriores...
Cores, Luzes e Movimentos: são estrategicamente utilizados para aumentar a impulsividade do usuário. Aquele sentimento de "Preciso clicar nessa notificação vermelhinha pulsante no canto superior da tela".
Diminuição na concentração e rendimento cognitivo: a mera presença de um smartphone próximo pode reduzir a capacidade cognitiva ao fragmentar a nossa concentração e estarmos em constante estado de alerta.
Cansaço: há uma associação comprovada forte entre uso de telas e a quantidade e qualidade do sono durante a noite e o cansaço apresentado durante o dia.
Ansiedade: a quantidade e velocidade de informações e o constante medo de estar “por fora”, no que popularmente diagnosticam como FOMO (Fear of Missing Out).
Vício: em pesquisa promovida pela Common Sense Media, 50% dos adolescentes dizem estar viciados no smartphone, enquanto 27% dos pais dizem o mesmo.
Depressão e suicídio adolescente: problemas de saúde mental entre jovens estão em alturas recorde e não param de aumentar. Uma quantidade considerável de estudos correlaciona esse problema ao uso intenso de tecnologia.
Relacionamento: usuários compulsivos de aplicativos de relacionamento, como Tinder, Badoo e Happn, encontram-se em um estado de tristeza, o que eleva o afastamento social, gerando assim um ciclo vicioso entre a intensidade de uso do aplicativo e isolamento social.
Acidentes e mortes: o uso de smartphones é uma das maiores e mais frequentes causas de acidentes automobilísticos.
Clickbait, fake news, polarização, extremismo e “guerra”.
Num feed no qual cada usuário pode escolher suas fontes e ainda é alimentado com notícias recomendadas por sua “relevância”, leitores se informam em bolhas ideológicas próprias, distintas e praticamente intocadas, estabelecendo uma estrutura propícia para polarização.
Fake news* e clickbait* são justamente as que ganham mais destaque nas fontes coletivas de informação - de fato, notícias falsas têm 70% mais chance de serem compartilhadas e espalham 6 vezes mais rápido na média - portanto chegam ao topo do feed de notícias com mais frequência. Cada um lendo seu feed personalizado com “notícias” mais bombásticas no topo, é semeado o extremismo e radicalização nos polos.
Vídeos de terraplanismo, antivacina e conspirações em geral ganham destaque, ressurgindo teorias obscurantistas em uma sociedade moderna.
Tomando um exemplo prático: o conspiracionista estadunidense Alex Jones afirma em vídeos de seu canal no YouTube que o Pentágono estaria despejando químicos nos lençóis freáticos para estimular a homossexualidade da população, entre outros absurdos sem evidências. Conteúdos somente desse canal já foram recomendados mais de 15 bilhões de vezes a usuários do Youtube pela própria plataforma.
Apesar da realidade de mudança climática ser consenso entre praticamente toda a comunidade científica, vídeos em desacordo somam o mesmo número de views por estarem sendo impulsionados pelo algoritmo do YouTube - criando pressão social e política que atrapalha completamente o debate técnico sobre ações necessárias. Todo tipo de questão urgente global pode estar sujeita a isso.
Esta questão é ainda mais preocupante ao sabermos que a percepção de “frequência” de uma informação torna ela mais acreditável. De fato, através de uso de bots, é possível reverter a opinião de um grupo até o dobro de tamanho de uma opinião minoritária. Como sugeriu Goebbels: “uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade”. Isso vale para opiniões políticas como também para a percepção geral sobre temas acadêmicos ou científicos.
É exatamente assim que floco de neve vira uma avalanche em proporções globais, explicando o ressurgimento do obscurantismo e movimentos políticos extremistas em diversos países. Exponencializado em tempos de pandemia, vemos enfermeiros e jornalistas sendo agredidos. As consequências não se limitam ao campo ideológico, mas também incitam parcelas da população a violência e instauram sobre todos nós um clima de guerra.
Você já deve ter ouvido aquele velho e famoso discurso saudosista de alguém mais velho tentando alertar sobre o uso exagerado de algo que "na minha época era diferente...", o sermão que permeia todas as décadas, desde o jornal, o rádio, a televisão, o videogame... O fato é que existe uma guerra cada vez mais voraz pela sua atenção e seus dados - e as armas estão ficando cada vez mais sofisticadas, enquanto o cérebro humano ainda é, essencialmente, o mesmo desde que saímos das cavernas. Tecnologias como eye-tracking, reconhecimento de voz, análise de micro músculos faciais, recursos impensáveis há poucos anos já são realidade, sem mencionar as novidades que podem ser divulgadas na próxima semana.
E qual é o destino de nossa autonomia, saúde mental e equilíbrio de vida? Especialistas já preveem que, se mantivermos a mesma rota, o próximo passo não é somente mudar o conteúdo que nos atinge, mas sim moldar o nosso comportamento.
“Você está sendo programado”
Chamath Palihapitiya, ex-VP de user growth do Facebook
MAS POR QUE ESTOU FALANDO DISSO?
O objetivo primário é a conscientização e reflexão, esperamos contribuir e difundir essa discussão, pois sabemos que isso já tem gerado efeitos factuais, caso contrário Mark Zuckerberg não teria reconhecido em 2018 a necessidade de que Facebook seja time well spent (tempo bem gasto) e o Google não teria feito um anúncio sobre "reduzir distrações".
Os avanços tecnológicos se desenvolvem em ritmo exponencial e, com o tempo, a capacidade de maximizar qualquer métrica torna-se então praticamente ilimitada. Mas qual será essa meta no futuro? Maximizar ainda mais o tempo de tela? É imperativo sabermos o que está por trás das plataformas, somente assim poderemos exigir métricas e que maximizem, não nossas fraquezas, mas nossas vidas.
A única coisa que temos na vida é tempo e ele é um recurso finito. Até quando vamos continuar distraídos perdendo alguns minutinhos que se somam em horas? Perder aquelas noites gostosas que planejamos, perder uma infância ou um casamento… Os segundos passam e não voltam, pequenas distrações podem gerar grandes arrependimentos.
Vemos o quão sagrado é o tempo e queremos promover o seu devido valor, um minuto de sua atenção pode mudar a sua vida. Esperamos que esta série de artigos sejam o toque de despertar necessário para nossa sociedade.
“Se me pedissem o conselho mais importante que eu poderia dar, aquele que eu consideraria ser o mais propício para os homens do nosso século, eu simplesmente diria: em nome de Deus, pare um momento, pare seu trabalho, olhe à sua volta."
- Leo Tolstói, Ensaios, Cartas e Miscelâneas
Este artigo foi escrito como tratamento de um longa documentário "Um Minuto de Sua Atenção" por Eduardo Wahrhaftig, Erick Cariler e Kim Loeb. Para perguntas relacionadas, entre em contato.
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