Uma coisa importante é saber que às vezes há uma diferença entre a atuação do usuário e a sua intenção fundamental. Ou seja, só porque o usuário está tomando tal decisão, não quer dizer que ele está atuando de acordo com seus valores. Portanto, simplesmente maximizar a métrica de tempo de tela não quer dizer que "só estamos entregando aos usuários o que eles querem".
Uma pergunta importante é identificar o que separa autonomia e perda dela: a partir de qual ponto podemos considerar que o usuário está atuando de forma que não esteja alinhada a seus valores, cedendo a "vícios" ou tentações momentâneas?
A resposta resumida disso está na compreensão conceito de Flow versus o conceito de Imersão:
Ou como explicam Fred Turner e Tristan Harris no podcast do Center for Humane Technology:
Fred Turner: A diferença é o arbítrio (agency em inglês). Mihaly Csikszentmihalyi fala sobre pessoas que têm extraordinário arbítrio no treinamento. Eu penso sobre essa diferença que estamos descrevendo (entre flow e imersão) como a diferença entre afogar e nadar. O afogamento é uma experiência totalmente envolvente. Você não pensa em mais nada. Você pode não estar respirando, mas está totalmente, cada parte do seu corpo empenhada em experimentar o afogamento. Na natação você também está na água, mas tem arbítrio. Você tem habilidades que foram treinadas em você. Você está no comando de seu relacionamento com a água. Você se move através dele. E conforme você se move através dele, você desenvolve um ritmo em seu próprio arbítrio, em seu próprio corpo dirigido de dentro para servir a uma missão que você valoriza.
Tristan Harris: Certo. Então, apenas para traduzir de volta para algo como o exemplo da culinária, como se você estivesse fatiando cenouras. Não é como se você se perdesse fatiando essas cenouras, ainda há arbítrio acontecendo. Ao contrário, lá está você no feed de notícias do Facebook, scrollando ou algo parecido. O arbítrio não está realmente acontecendo da mesma maneira
A tecnologia é a princípio uma ferramenta, no entanto há recursos dela sendo usados com os quais ela deixa de ser uma ferramenta e passa a ser algo diferente. O Mercado Extrativista da Atenção, com o seu intuito de maximizar tempo de tela, se utiliza de alguns gatilhos os quais estimulam não o flow, mas a imersão.
Há exemplos como criar um constante senso de urgência com notificações ou alertas vermelhos piscantes. Através do uso de scroll infinito ou autoplay sequencial, essas plataformas não oferecem pausa para reflexão - como o próprio criador do scroll infinito, Aza Raskin, diz: “se não deixamos a mente alcançar os seus impulsos, você permanece scrollando imerso”.
Porém muitos exemplos podem ser mais sutis, estando numa zona moral cinzenta, como por exemplo a saturação das cores ou botões sonzinhos - o impacto disso muda conforme indivíduo e situação também.
Há uma questão inerente ao sistema freemium ou ad-based-revenue em que o interesse do usuário nem sempre está alinhado ao da plataforma. A questão passa a ser mais preocupante quando há uma relação desequilibrada entre as partes - com o avanço do poder computacional das plataformas, a tendência deste desequilíbrio é crescer.
O importante é fazer com que a plataforma aja em prol do usuário e não somente o usuário em prol da plataforma. No caso de ad-based ou freemium, que pelo menos esta relação seja equilibrada com benefícios para ambos os lados.
Sendo a métrica de tempo de tela e in-app purchases uma realidade do modelo de negócio, o que pode ser feito por uma plataforma consciente é minimizar uso de certos artifícios que minam autonomia e eliminam a reflexão, artifícios como notificações intrusivas, alertas vermelhos piscantes, scroll infinito e autoplay.
Enfim, cuidar para que o usuário tome decisões baseadas em suas "intenções fundamentais"/valores (que citei acima): seja quando clicar num anúncio, comprar um power-up, jogar próximo level ou assistir ao próximo vídeo.
Acredito que isso seja o mínimo necessário com o qual a nossa sociedade deve se preocupar, no entanto o mínimo nem sempre basta. Para ir além, precisamos entender quais são os valores fundamentais do usuário e promover uma forma dele atuar com base nisso, mantendo o seu arbítrio. Se, por exemplo, uma plataforma promove um jogo que promete aumentar a sua capacidade linguística, seria interessante que esta também seja uma métrica mensurada e um resultado a ser otimizado entre os desenvolvedores.
Agora, se isso vai contra os incentivos do empreendedor, talvez precisamos repensar uma estrutura de sociedade cujos incentivos estejam alinhados aos nossos valores.
BONUS: caso o conceito de Flow e Imersão ainda não estão completamente claros, o filme da Pixar, "Soul", explica bem esse conceito:
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